A Força do Amor
No ano de 1971, fui
trabalhar em um armazém numa cidade do interior. Neste armazém, conheci uma
grande variedade de personalidades que compunham a sociedade local. Havia um
cliente comum, como tantos outros, ele aparentava uns quarenta anos de idade,
era um negro de um metro e oitenta de altura, um abdômen ligeiramente
avantajado, um bigode negro e grande, salientava-se em sua face constantemente
alegre. Trajando sempre um uniforme impecavelmente limpo. E, pelo uniforme
poderíamos identificá-lo como vigia da clínica psiquiátrica local.
Eu desconhecia o seu
salário, mas poderia julgar pelos seus gastos e na dificuldade em coordenar os
itens alimentares e higiênicos dentro do seu orçamento, para que não haja déficit
no período dos trinta dias. Nunca reclamava da vida e nem pedia nada a ninguém,
pois, suas compras, ele às colocava em um saco branco e alvejado, jogava nos
ombros e desaparecia entre os transeuntes da calçada. Este cliente me intrigava
em vê-lo sempre irradiando felicidade, mesmo pertencendo a uma comunidade
carente, em que quase todos viviam a reclamar da vida e da sorte.
Numa pesquisa em sua
comunidade, foi quase unânime a resposta de que não tinham nada, viviam numa
miserabilidade geral, mas o nosso cliente, talvez tenha sido o único a
declarar, que nada lhe faltara, pois a felicidade imperava em seu lar.
Houve um dia em que o nosso
cliente pode ousar nas compras, aumentando nos itens e no peso. Talvez, tenha
sido um abono salarial que o proporcionou a ousadia nas aquisições! Devido ao
peso excedente em suas compras, ofereci-me para entregar em sua residência, a
qual eu desconhecia até mesmo sua comunidade. Após agradecer e tentar recusar
minha oferta resolveu me dar o endereço para a entrega.
Era aproximadamente umas dez
horas de um dia de verão, em que o sol causticava os habitantes da cidade,
quando coloquei as compras no carro e me dirigi ao bairro. Ao chegar ao
endereço, constatei uma pequena casa de pau-a-pique (ripas cruzadas e cobertas
de barro) na subida do morro, rodeada por um terreiro de chão batido e
vizinhando a uma grande e diversificadas humildes residências.
No terreiro, brincavam três
crianças negras. Trajando cauções e camisas confeccionadas em tecidos de sacos
brancos e alvejadas, os negrinhos com seus sorrisos brilhantes transmitiam
irradiante alegria, contagiando todos que por ali passavam. Quando me
aproximei, veio ao meu encontro uma mulher negra, esbelta e de cabelos bem
cuidados, trajava também um vestido de tecido igualmente o das crianças,
identificando-se como a mãe das crianças e esposa de nosso cliente.
A negra, naquele vestido de
pano de saco alvejado, se apresentava como se o vestido fosse confeccionado por
estilista famoso, sua exuberância e beleza, como as crianças, contagiou-me com
sua felicidade. Ao ver-me com as caixas de compras, pediu-me que entrasse, para
colocá-las em uma pequena mesa. A casa era de apenas um cômodo de chão batido,
também, como o terreiro, parecia de cimento. Possuía uma porta e duas janelas.
A cozinha era a primeira parte da casa em que havia um fogão e uma prateleira
de tábuas cobertas com tecidos de sacos alvejados. Seus utensílios de alumínio
amassados, mas, totalmente limpos e brilhantes que pareciam novos. Ao lado da
prateleira havia uma tália de barro, contendo água potável e fresca, da qual,
deliciosamente saciei a minha sede.
Após deixar as compras, me
despedi daquela misteriosa mulher e suas crianças, que com sua simplicidade me
fez ver que a felicidade existe independente de classe social, bastando apenas
uma boa dose de amor. Algum tempo
depois, ao assistir uma reportagem na televisão, me assustei ao ver um
deslizamento naquela comunidade, destruindo muitas moradias e deixando os
moradores em pânico.
O que mais me chamou a
atenção foi quando o repórter entrevistou os desabrigados em desespero que em
prantos reclamavam da vida e que haviam perdido tudo. Então, lembrei-me da
pesquisa feita nesta mesma comunidade, e estes mesmos haviam declarado não ter
nada! Como agora perder tudo?
No final da reportagem,
apareceu o nosso cliente abraçado à esposa e a seus três filhos, que como
sempre irradiando alegria e felicidade, responde as perguntas do atônito
repórter: sim, eu morava aqui, mas não perdi nada, apenas aquele abrigo de
corpos, pois o meu tesouro, o que constitui a felicidade está aqui juntinho
comigo.
Roberto Jardim
22/06/2004